Mitomania
A mania de mentir por qualquer coisa.
Luciano Melo
12/29/20253 min read


Mitomania: quando a mentira deixa de ser escolha e se torna um sintoma
A mitomania, também conhecida como mentira patológica, é um fenômeno psicológico complexo, no qual o ato de mentir deixa de ser pontual ou estratégico e passa a ocupar um lugar central na organização psíquica do sujeito. Diferente da mentira comum — utilizada ocasionalmente para evitar conflitos, proteger alguém ou preservar a própria imagem —, na mitomania a mentira torna-se recorrente, muitas vezes desnecessária e, em alguns casos, prejudicial ao próprio indivíduo.
A pessoa mitomaníaca pode criar histórias elaboradas, exagerar fatos, inventar conquistas, doenças, perdas ou situações dramáticas, mesmo quando não há um ganho evidente. Em muitos casos, essas narrativas são apresentadas com grande convicção, o que dificulta para os outros perceberem que se trata de algo não verdadeiro. Com o tempo, o próprio sujeito pode passar a acreditar parcialmente em suas construções.
É importante compreender que a mitomania não se resume a caráter, má-fé ou falta de valores morais. Na clínica, ela é entendida como um sintoma, uma tentativa psíquica de lidar com conflitos internos profundos, fragilidades emocionais, sentimentos de inadequação, vazio ou necessidade intensa de reconhecimento.
Frequentemente, a mentira funciona como um recurso de sobrevivência psíquica. Por meio dela, o sujeito tenta sustentar uma imagem idealizada de si mesmo, preencher faltas emocionais ou proteger-se de sentimentos dolorosos como vergonha, rejeição, abandono ou desvalorização. A narrativa falsa pode oferecer, ainda que momentaneamente, uma sensação de pertencimento, importância ou controle.
Na vida relacional, porém, a mitomania tende a gerar consequências significativas. Relações afetivas, familiares e profissionais são frequentemente marcadas por desconfiança, rupturas e conflitos. À medida que as mentiras se acumulam, o sujeito pode se ver preso em uma rede de histórias difíceis de sustentar, o que aumenta a angústia, o medo de ser descoberto e o isolamento emocional.
Do ponto de vista psicanalítico, a mitomania pode ser compreendida como uma dificuldade de o sujeito sustentar sua própria verdade psíquica. A mentira aparece como uma defesa frente a uma realidade interna que, por algum motivo, se torna insuportável. Em vez de simbolizar, elaborar ou falar de sua dor, o sujeito constrói narrativas que encobrem aquilo que não consegue enfrentar diretamente.
A psicanálise clínica oferece um espaço fundamental para o tratamento da mitomania, pois não parte do julgamento moral da mentira, mas da escuta do que ela representa. O trabalho terapêutico busca compreender por que o sujeito precisa mentir, o que está sendo protegido, evitado ou sustentado por meio dessas construções.
Ao longo do processo, o paciente é convidado a entrar em contato com sua história, seus afetos e suas fragilidades, construindo gradualmente a possibilidade de existir sem a necessidade constante de máscaras. Esse caminho exige tempo, vínculo terapêutico e uma escuta ética, capaz de acolher sem reforçar a mentira e sem expor o sujeito à humilhação.
O objetivo do tratamento não é simplesmente fazer com que a pessoa “pare de mentir”, mas ajudá-la a construir uma relação mais verdadeira consigo mesma, fortalecendo sua identidade, sua autoestima e sua capacidade de sustentar a própria realidade psíquica.
Reconhecer a mitomania como um sofrimento — e não apenas como um comportamento inadequado — é um passo essencial para que o cuidado seja possível. Onde hoje existe mentira, muitas vezes há dor, medo e uma história que ainda não encontrou espaço para ser dita.
Buscar ajuda profissional é um movimento de responsabilidade e coragem. Quando a palavra encontra lugar, a mentira deixa de ser necessária.
Texto autoral
Luciano Melo
Psicanalista Clínico